2013, Junho e a luta aberta das ruas

Para analisar junho de 2013 em 2023, é preciso se despir de todas as análises deterministas que pairam sobre o espectro que se tornou o processo das manifestações. Não é possível avaliar tão complexo acontecimento a partir de uma lógica simplista e maniqueísta, tipo guerra híbrida x manifestações espontâneas convocadas pelas redes sociais (pra não falar do delírio revolucionário). Nenhuma dessas abordagens ajuda a gente a entender o que aconteceu. Por outro lado, descartar completamente a interferência estrangeira, quando isso é mais do que provado nas páginas do Wikileaks, é acreditar numa soberania que nunca existiu. Do mesmo modo, acreditar que todos os manifestantes eram reacionários a mando da CIA é não entender os limites que as ações de comunicação têm na construção de sentimentos e os anseios da população em relação aos serviços estatais. Menos ainda a realidade das cidades brasileiras.

André Singer, ao avaliar as jornadas, levanta a figura mítica de Juno. Para ele, “’jornadas de Juno’, [onde] cada um vendo nas nuvens levantadas nas ruas a forma de uma deusa diferente”, faz também uma avaliação diferente.

O mais importante, porém, é colocar as manifestações no contexto social, político e cultural que pairava sobre o país naquela época. Principalmente sob a perspectiva da luta de classes.

Aqui a gente deveria abrir um parêntese para analisar a comunicação social daquela época e o real poder que as chamada redes sociais têm na sociedade de hoje, mas eu já fiz isso quando do lançamento do filme O Dilema das Redes, nessa avaliação aqui, chamando a atenção para a visão linear que ainda se tem sobres os processos de comunicação. Entendo que essa visão ainda é hegemônica na nossa sociedade. E explica muito sobre o que aconteceu e como o fenômeno é visto pelos principais analistas. Surpreendentemente ainda é hegemônica nos campos de estudo da própria comunicação e informação, mesmo daqueles que buscam uma abordagem crítica nos seus estudos.

A questão de fundo sobre as manifestações diz respeito à indignação que a população, ou parte dela, que estaria vivendo diante de uma vida sufocada, principalmente nas grandes cidades. Apesar de grandes avanços sociais em diversos setores como saúde, educação, níveis de renda crescente e um país com quase pleno emprego, apesar da crescente, ainda que tímida, inflação, a vida na cidade não refletia essas mudanças. O transporte público ainda era caro e ineficiente nas mãos de grandes empresas trazendo grandes dificuldades para os cidadãos que queriam cumprir sua jornada diária de trabalho.

E esse foi o rastilho de pólvora que fez explodir uma indignação que era legítima por um lado, mas que não compreendia holisticamente o processo político por outro. Apesar de grandes avanços sociais, havia sim uma indignação com a situação, legítima ou não, calcada na realidade social ou numa construção ideológica a partir do controle dos fluxos de informação. Nunca estivemos tão bem, nos números, e tão mal no sentimento. Textos do Singer mostram uma vida, embora melhor do que período anterior, ainda sufocada por serviços caros e ineficientes, principalmente nas grandes cidades. Embora ainda vivêssemos uma agenda positiva, o sentimento era de desmonte.

E para esse descompasso entre a realidade objetiva dos números e o sentimento das pessoas existem vários tipos de explicação. Esse autor acredita nos processos sociais de construção de hegemonia política como a principal delas e é aí que mora todo o problema que junho acabou nos trazendo. E isso tem a ver com a mediação social, não só midiatizada, mas uma mediação que controla fluxos de informação que são muito difíceis de rastrear. Aqui nesse processo entram no mesmo caldo de cultura as igrejas neopentecostais em ampla ascensão, os grandes meios de comunicação e os (naquela época novos) meios digitalizados, as famílias de classe média baixa em ascensão financeira, porém detentora de valores mais tradicionais entre outros elementos que constroem a visão de mundo que as pessoas têm.

Isso tudo permeado por um acirramento constante da luta de classes. E é sobre esse tema que junho de apoia. As manifestações acabaram sendo uma parte importante do processo de retomada do poder da classe dominante diante de uma política econômica que vinha se desenvolvendo que buscava um equilíbrio das forças.

Dilma, que fez essa ótima avaliação das manifestações em publicação recente, na condição de presidenta à época, reagiu bem às manifestações, que pediam mais serviços público, hospitais padrão FIFA (seja lá o que isso for) entre outras questões legítimas, para não falar do estopim, que foi o aumento do preço na passagem e apresentou o Mais Médicos entre outras medidas de cunho popular que ia ao encontro das reivindicações. Mesmo assim, viu sua popularidade cair. A partir daquele momento, o legado do PT estava ameaçado com a possível não reeleição no ano seguinte. O que acabou não acontecendo naquele momento, mas o terreno para o golpe de 2016 já estava pavimentado. Junho representou, no final das contas, um importante passo, não o único e talvez nem o mais importante, mas o mais conhecido para a retomada da hegemonia neoliberal que acabou dando no bolsonarismo.

No contexto da luta de classes, o governo de conciliação já dava sinais de desgaste, num processo que obedecia a lógica do limite político das construções econômicas e políticas do pleno emprego. Esse texto, analisando a situação um pouco depois e resgatando um texto clássico do Michael Kalecki, nos dá dicas sobre o processo que havia começado bem antes e que teve o ano de 2013 como marco fundamental.

Os acordos possíveis entre uma burguesia industrial e o governo popular chegava ao seu limite. O ano todo foi de tensão entre as partes envolvidas, os banqueiros que viram a Dilma apertar seus lucros, os industriais que viram o poder de uma emergente classe trabalhadora, agora com possibilidades de negociar melhores condições sem o fantasma do desemprego, além de outras camadas da burguesia brasileira rompem o acordo feito anos antes em busca do poder perdido. A própria construção do neoliberalismo é uma retomada do poder de classe perdido nos tempos de Estado de Bem Estar Social, conforme nos mostra David Harvey. Foi o que aconteceu aqui, durante esse período de fim do ciclo progressista, com consequências sinistras que devem ser analisadas em outro momento.

Mais do que analisar as chamadas “jornadas de junho” é preciso analisar o contexto que isso aconteceu e quais as consequências das manifestações para a vida política. Essas pistas nos levarão a novas interpretações de coisas que já estavam acontecendo há tempos no país, aconteceram depois e que junho foi apenas a expressão mais visível desse processo. As manifestações, dessa forma, se encaixam no processo de retomada que terá seu desfecho final no golpe de 2016, não de forma linear, com disputas, claro.

Mais uma vez, Singer nos dá a dica:

Em junho de 2013, o cerco rentista recebe inesperado reforço proveniente das ruas. O caráter contraditório das manifestações de junho72,iniciadas pela esquerda e engrossadas pelo centro e pela direita de maneira inusitada, elevou a rejeição à presidente, obrigando-a ceder mais alguns metros de terreno. (https://www.scielo.br/j/nec/a/sWvZ7c6KRLYHT5jrh6FZSfG/) Singer

A narrativa de uma manifestação popular que se transforma em manifestações conservadoras ao longo do mês de junho é conhecida e parece ser a mais correta para analisar as “jornadas”. Mas como isso foi possível?

No começo do mês, o MPL – Movimento Passe Livre convoca manifestações contra o aumento da passagem. Essa já era uma prática comum em diversas cidades do país, porém, as repercussões da violência policial dos primeiro dias ampliou as manifestações ao ponto do próprio movimento não mais convocá-las. o MPL, portanto, em momento nenhum dirigiu as massas na rua. O aumento do número de manifestantes também gerou outras reações.

A mais importante, e que nos dá a melhor visão das opiniões dos jogadores do jogo do destino, é a da Rede Globo, mais especificamente, o seu ex-comentarista, já falecido, Arnaldo Jabor. No dia 12 de junho, Arnaldo critica as manifestações durante o Jornal Nacional. Diz que os manifestantes são todos de classe média e que os vinte centavos não farão falta àquele pessoal. Embora reconheça a legitimidade de se manifestar em uma democracia, critica a falta de foco e lança a ideia de se protestar contra a chamada PEC 37, que limitaria o papel de investigação do Ministério Público. Voltaremos a esse fundamental ponto.

No dia 17, o mesmo Arnaldo Jabor muda de opinião e exalta a importância dos jovens se manifestarem, coisa que, para ele, não faziam desde o “Fora Collor”. Mais uma vez, lança a pauta contra a PEC 37 e condena a violência dos BlackBlocs. No dia 31, o comentarista associa as manifestações às mudanças no julgamento do chamado “mensalão” do PT, dando claros sinais, não só da apropriação do imaginário das manifestações pela direita, como da submissão da justiça ao noticiário, coisa que veríamos claramente em outro processo contra o partido mais adiante no tempo, a Lava-jato. Nesse dia, a PEC 37 já havia sido rejeitada permitindo ao Ministério Público investigar crimes. O resultado disso todo mundo conhece: lava-jato, lawfare, prisão do Lula, Bolsonaro e milhares de mortos.

O central desse processo é que a direita, nacional e internacional (quem não lembra do vídeo da menina loira falando em inglês denunciando os “gastos da copa”?), viram nas manifestações crescentes a possibilidade real de derrubar o governo popular legitimamente eleito que vinha construindo uma ampla hegemonia do Partido dos Trabalhadores na sociedade. O dia 20 foi um claro claro exemplo desse processo, inclusive com a Globo suspendendo a exibição da novela da 21h, um dos seus principais produtos, esperando a queda do governo. Após as mudanças nas abordagens na cobertura midiática, a incitação contra o governo nos levou às cenas dantescas de invasão e quebradeira dos prédios governamentais em Brasília e a uma verdadeira batalha campal após a manifestação na Av. Presidente Vargas, no Rio. A direita organizada se sentia livre para mostrar a sua cara no país depois de muito tempo.

A Imprensa apoiava as manifestações, mas não a violência e a quebra de vidraças, públicas ou privadas. E aqui mora outro enigma de Junho, os Blackbloc.

Tive meu primeiro contato com essas figuras, pautadas na ação direta, na época do Fórum Social Mundial, em 2001. Aquele tipo de ação parecia interessante, principalmente naquele momento de ampla hegemonia neoliberal, diante das ações contra as reuniões multilaterais promovidas pelas entidades internacionais. Era uma forma de quebrar o consenso construído durante na década anterior.

Os limites desse tipo de ação logo foram conhecidos, pois servem para destruir ou se defender, mas não constroem nada. E, em junho, apesar da desconexão com a disputa política mais real, os BlackBlocs acabaram, acho que sem querer, cumprindo um papel importante, dificultaram muito a apropriação das manifestações por parte da direita. Era muito difícil para a mídia tradicional apoiar uma manifestação violenta, o que permite até hoje que junho tenha esse caráter dúbio, nublado, pouco claro.

O que também já aparecia muito antes de 2013 era a rejeição aos partidos políticos como forma principal de organização social. No final da década de 1990, organizamos muitas manifestações contra o desmonte das universidades federais. Paramos a cidade do Rio de Janeiro interrompendo o transito em vários pontos importantes da circulação rodoviária. Nas reuniões de preparação dessas ações, já víamos aparecer a rejeição aos partidos e às organizações mais tradicionais. Essa visão ganha força durante a construção do Fórum Social Mundial, onde os partidos foram excluídos da organização, que contava com organizações sindicais, ONGs e outras formas de construção da chamada sociedade civil. Mas, de alguma forma, tanto no primeiro encontro, como no segundo, essa visão foi neutralizada e a principal organização partidária nacional pôde ganhar uma eleição e começar uma tímida reforma na sociedade brasileira.

Essa visão de mundo, baseada na organização mais fluida perde força com a vitória eleitoral do PT em 2002, mas volta com força após 2013. Essas lutas sempre estiveram por aí e se encontraram nas ruas em junho.

É preciso afirmar que, entre muitas coisas, junho foi sim, como disse a Dilma, uma manifestação contra o sistema. O problema é que nós somos o sistema. Esquerda moderada e direita se encontram nesse espaço, de forma que sobrou para a extrema direita o monopólio sobre esse discurso “contra tudo isso que está aí” que prevaleceu no final de junho sobre as reivindicações pontuais sobre a passagem de ônibus.

Não só o mês de junho, mas todo o ano de 2013, deixa assim, muitas lições que ainda precisamos aprender. Decifrar seu enigma é olhar para o futuro, quando as forças sociais novamente se movimentarão em busca de poder de classe perdido. É importante estarmos preparados para os desafios que nos aguardam nos próximos períodos históricos, para além das melhoras pontuais na vida da população, embora isso seja essencial, principalmente para o mais necessitados.

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