Um breve olhar sobre as tecnoutopias

No bojo dos 50 anos do golpe militar que depôs o presidente Salvador Allende no Chile, fomos contemplados com o belíssimo estudo, em forma de podcasts, realizado por Evgeny Morozov, sobre a instigante experiência do CyberSyn (ou SynCo, em espanhol). O projeto foi a tentativa de construção de uma forma de controle sobre a produção a partir de uma rede de comunicação (naquela época e lugar, com recursos limitados, usavam telexes como principal instrumento de comunicação entre as pontas do sistema) que combinava elementos instrumentais e organizacionais contando com a participação dos trabalhadores, trazendo uma visão cibernética para aquela organização. História também contada no livro de Eden Medina.

O projeto ficou famoso, embora ainda não estivesse terminado, e nem viria a ser completamente implementado, durante a greve dos caminhoneiros que paralisou as estradas daquele país, numa demonstração de força das organizações que se opunham ao governo socialista de Allende. A ideia de uma comunicação direta entre o governo central e as fábricas sob o controle dos trabalhadores era central no projeto encabeçado pelo cibernético inglês Stanford Beer. Ainda em forma embrionária, serviu para garantir o abastecimento das cidades durante o paro golpista. A experiência mostrou que os mesmos instrumentos que servem à opressão, também podem ser usados para a emancipação dos trabalhadores e que seus usos, assim como seus desenvolvimentos, estão sujeitos à forma de apropriação possível na sociedade. Essa apropriação e esse controle sobre o desenvolvimento de tecnologias, em geral, é feito por quem tem mais poder financeiro, ou seja, os capitalistas, em geral o mercado financeiro, que tem o poder de financiar os rumos do desenvolvimento e influenciar os seus usos a partir de constructos ideológicos.

Mesmo a utopia de uma distribuição de poder através de recursos cibernéticos não foi suficiente para impedir o golpe de estado contra o governo socialista de Allende que levou seu líder à morte em um momento posterior. A Política, no final das contas, prevaleceu sobre as decisões técnicas da organização da produção e o império, mais uma vez, mostrou as suas garras sobre a América Latina, impondo não só uma restrição ao desenvolvimento autônomo, mas criando um novo padrão de desenvolvimento onde o mercado se imporia sobre as outras faces da vida, no que viria a ser conhecido com neoliberalismo.

O resgate dessa história nos faz repensar as relações entre a política e desenvolvimento científico e tecnológico. Essa relação muito íntima entre os diversos fatores que vão determinar o caminho trilhado pelas invenções humanas pode nos levar para um lado mais centrado nos negócios e lucros, como tem sido a tônica da sociedade capitalista, ou pode nos levar para melhor aproveitar todo o potencial criativo humano para um melhor viver. É, portanto, o rumo das disputas políticas que vão determinar a função social da tecnologia.

Essas reflexões me levaram a fazer as pazes com a minha dissertação, onde me debrucei sobre uma dessas experiências na qual o desenvolvimento de tecnologias e conhecimentos autônomos e livres serviram de proposta para uma nova forma de viver em sociedade. Essa experiência aconteceu no Equador do Buen Vivir durante o governo Rafael Correa e foi nomeada como Flok Society (Free Libre Open Knowledge), a sociedade do Buen Conocer, como uma forma de aprofundamento da própria ideia de Buen Vivir. Afinal, para uma se construir uma boa vida, é necessário construir bons conhecimentos que a suportem.

A ideia por trás da FLOK society era uma construção de novos conhecimentos e tecnologias livres a partir da participação social ampla em parceria com o governo, que atuaria enquanto um facilitador e não como um ente que dirigiria a economia investindo em setores estratégicos como forma de gerar emprego e renda e com isso fazer a economia girar, como é a formula da social democracia, de forma simplificada.

Essa relação foi batizada pelos promotores da FLOK de Economia Social do Conhecimento (ESC), se opondo à ideia do capitalismo contemporâneo que têm nos ativos cognitivos sua principal criação de valor, seja a partir de uma escassez artificial, como é a criação de valor a partir da ampliação dos Direitos de propriedade intelectual, seja na atual forma de extração de dados para um posterior processamento criando valor a partir do uso comercial deles, como é a atual fase do capitalismo conhecida por Capitalismo de Plataforma.

Na Economia Social do Conhecimento, o valor está associado à colaboração, assim como é na Economia Solidária, onde a forma de organização cooperativada prevalece sobre às demais, empresariais. Para que possa se desenvolver, esse tipo de economia deveria se basear em uma relação de parceria entre o Estado e as diversas formas de organização da sociedade. Esses seriam, na visão dos seus organizadores, dois dos três pontos de sustentação da ESC, sendo a participação social o terceiro ponto.

Assim como o projeto do Cybersyn, a FLOK teve uma vida muito curta e não foi plenamente implementada, sendo interrompida por questões mais amplas ligadas à geopolítica. Questões que são muito centrais na história da nossa região e que sempre impediram o livre desenvolvimento do nossos países. Ciclos virtuosos que são interrompidos por interesses de lugares distantes impedem a construção de uma forma de vida própria da região, nos colocando sob o guarda-chuva ideológico do chamado ocidente, mesmo que, na prática, não pertençamos a esse ideia de mundo.

Outras iniciativas que buscaram dar uma centralidade ao desenvolvimento tecnológico procurando construir novas formas sociabilidade são encontradas em diversos lugares, como o uso de softwares livre nos primeiros governos Lula, o governo digital do RS, a própria dinâmica da economia solidária no Brasil e o núcleo de tecnologia do MTST, para ficar somente em experiências recentes e localizada próximas a gente, ilustram essa busca pelo uso de tecnologias, principalmente as digitais para se construir novos mundos. Claro que a luta pela democratização das comunicações, histórica, passa, de alguma forma pelo uso das TICs de uma forma não convencional, como é o exemplo das milhares de rádios comunitárias que ocuparam o espectro brasileiro há alguns anos. O desenvolvimento de aplicações na internet por mídias livres também serve de ilustração das formas de resistências, mas o que a FLOK e o CYBERSYN têm em comum é o papel do Estado nessa construção.

Essas experiências não são simples construções de mundos alternativos, mas, quando contam com a presença do, e a luta pelo, Estado, trazem a velha interpretação do lutadores socialistas antigos que entendiam essa construção fundamental para o exercício do poder e uma mudança real para todos os trabalhadores. Então a luta pelo controle do Estado deve ser central para a transformação das vidas de milhões de pessoas. Qualquer mudança, dessa forma, deveria necessariamente passar por essas estruturas, a partir de um entendimento de que o Estado foi fundamental para a construção do poder de classe da burguesia e deverá ser também fundamental para a construção do poder de classe do proletariado. Essa relação, dessa forma, marca essas experiências e apontam para um futuro onde o desenvolvimento científico e tecnológico seja central não mais para a ampliação das desigualdades, mas na construção de um mundo com melhores condições de vida para todos.

E é exatamente a compreensão do papel central que o conhecimento, assim como a informação e o desenvolvimento científico e tecnológico, desempenha na vida social contemporânea, que experiências como essas se apresentam. E fazem isso a partir do acúmulo histórico de teorias que buscaram entender as relações sociais internacionais. A autonomia de desenvolvimento científico e tecnológico é central para a construção real de soberania das nações, principalmente as nações periféricas que são dependentes do desenvolvimento do centro do mundo. Para se alcançar esse patamar, porém, é preciso acumular força política que garanta recursos, financeiros e políticos, para os centros de pesquisa realizarem pesquisas que sejam voltadas para o desenvolvimento da sociedade. E isso passa pela tomada do Estado enquanto ente capaz de realizar essas demandas e enfrentar essa diferença que nos coloca na periferia do mundo que desenvolve conhecimento.

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